Pontuação

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Acertei com o acaso o dia e o jeito certo de te encontrar. Vou fingir despretensão, que é o que faço de melhor. Vou falar pouco de mim e perguntar bastante de você, que é o que faço bem. E vou notar cada um dos seus detalhes. Seus tons, suas linhas, suas curvas e suas cores. Como um aluno que aprende uma nova matéria fascinado pelas descobertas, porque o que excita é descobrir. – E assim nasce mais um encantamento, essa coisa que me move e me rebuli, mas que eu sou hesitante em chamar de amor. Não por falta de fé na perenidade do sentimento, mas porque encantamento me parece ser algo tão mais livre e condizente com o estado em que a gente ficar. O encantamento é embelezador, realça as cores do mundo e floreia onde só havia concreto. Se der, por sorte e outros princípios involuntários, esse encantamento vira amor. Amor suporta o peso do cotidiano e tem lá suas características controversas. Encantamento não, porque encantamento corre solto. Encantamento é aquele que flui. E minha reza a Oxum é para que tudo entre nós flua como as águas de um rio caudaloso. E então eu vou te cultivar e invadir até o dia que isso chegue num fim, que pode ser reticente ou fatal. O fim é quando a gente se esquece de como descobrir. Depois a gente discute que papel coube a quem, depois eu espero o tempo abrandando nossos incômodos e quem sabe há outra aproximação? Um último beijo, outra briga, asperezas e silêncios. Cada um pro seu lado, clamando à vida por um outro caso, outro encantamento, outro amor. Um novo castelo para outras expectativas.

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Mariposa

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É em fim de noite de domingo que a solidão, antes encasulada, cria asas e preenche os cômodos da casa silenciosa. Eu finjo não ter medo quando a solidão vem com suas asas por trás de mim e me causa arrepio com seu sopro frio arrepiando a minha nuca. Ela me sussurra barbaridades existenciais e sinto medo. Calafrios. A solidão é pura nóia. Inventa. Te assombra. Te rodeia. E se você abre guarda, a solidão te come. Por trás, com força e a seco. Na tentativa de escapar, a gente cria atalhos tolos e frívolos. Aumenta o som da TV, coloca uma música inútil pra tocar, vagueia por páginas e mais páginas e quando menos espera, seu corpo está te traindo ao resgatar uma memória dolorida. Ou então você está lá procurando por alguma foto de quem você não mais deveria se importar. Neste ponto a solidão já enfiou a cabecinha. Tudo é risco. Você tenta escapar do pensamento, das memórias afetivas e de tudo mais que ficou pelo caminho, mas é tarde demais. Daí, sem saída, o jeito é relaxar. Deixa entrar e fazer rebuliço. Deixa cansar, desgastar, desidratar. Na segunda-feira o relógio não perdoa, despertador toca cedo, solidão não tem espaço em meio a correria, perde as asas e morre antes do meio-dia.

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Mágoa de estimação

tumblr_n3sk79yghV1qfhbsvo1_1280Estamos vivendo em tempos difíceis. Por todos os aspectos, esses são tempos difíceis. O Congresso mais conservador dos últimos anos, a classe média reacionária, a gourmetização do cafézinho, o preço da cerveja, o pau de selfie, a selfie… acho tudo isso cansativo e tudo isso é muito difícil. Mas dentre as maiores dificuldades encontradas nesse cenário caótico, está a negação a mágoa. Gente, se liga, guardar mágoa é lindo. Não compre cachorros ou gatos, é escroto. Não invente de ter aquário em casa, dá muito trabalho. Cultive suas mágoas que a vantagem é bem maior. Vou listar.

Eu acho que cultivar uma mágoa faz da gente mais humano. Se não fossem pelas mágoas que cultivo, jamais entenderia um álbum da Simone e nem de nenhuma outra cantora de MPB. Se não fossem as mágoas, não teria aprendido a gostar de samba e nem de Gonzaguinha. A mágoa tem o poder de nos unir e isso não pode ser esquecido. Sem essa de que todo mundo dá volta por cima com beijinho no ombro e coisas do tipo, vamos assumir o rancor e cultivá-lo.

Quem cultiva mágoa cresce junto com ela. Mas não pode ser um rancor mesquinho, que isso te puxa pra baixo e causa câncer. Falo da mágoa bem estruturado, de porquês bem definidos e argumentos eficazes. Mágoa que a gente dá jeito com volta por cima, que espera o momento certo para se sentir vingada, rancores edificantes, esses sim, verdadeiros diamantes.

O rancor tem o incrível poder de nos ensinar a ser menos mimados, e por isso, também menos melindrosos. Quem aprendeu a guardar um rancor bem guardado não te enche o saco com lamentação, não vai te cobrar coisas pequenas que dizem respeito à sua individualidade. Portanto, afirmo também que o rancor nos faz mais autônomos. Quem tem lá a sua coleção de rancores, sabe interromper ciclos viciosos e não vai entrar pela milésima vez numa relação amorosa que todo mundo vê que vai ser fodida, porque não quer novos rancores lhe abarrotando o peito.

Por fim, o rancor nos leva a um conhecimento mais íntimo e profundo de nós mesmos. Rancor é lindo e está aí para facilitar nossas relações interpessoais. É um investimento a longo prazo, claro. De mágoa em mágoa a gente faz um rancor lindo.

– Mas desfaça-se dele a cada roda de samba, a cada descida até o chão na hora do funk. Antídoto de rancor é sempre catarse.

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Lotação 440

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Delirei nas tuas possibilidades desde a primeira vez que te vi naquela manhã cinza de uma segunda-feira. Ônibus cheio, eu ofegante tentando entender como pude me atrasar, eu ansioso para chegar pontual no emprego e você ali reluzindo e desviando minha atenção, me embebedando de respostas e calmaria. Engravidei do teu olhar profundo, às vezes quase apático, que ao penetrar a minha pele fecundou os meus desejos encarnados. Ali mesmo eu te despi sem parcimônia e envolvi meu corpo em volta do teu, expandi cada poro com o vapor dos meus sussurros e explorei cada detalhe íntimo para a piração dos meus sentidos. Desembarquei.

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NATUREZA

tumblr_n8z130nKli1t0jj16o1_1280Pedra é coisa aguda
Hermética
Estática
Seca

Pedra é coisa una
Ainda que porosa
Ainda que solúvel
Pedra é coisa pétrea

Não areia
Que areia é coisa múltipla
Que outrora pedra
Agora se afina com o tempo

Areia é quase vidro
Ou até cristal
Que se há de ter cuidados
Senão te escorre entre os dedos
Senão te esfola a pele

Sou areia, às vezes pedra
Mas sobretudo areia
Daquelas bem finas
Encontradas nas praias mais antigas
Pequenas partículas
Fruto da força das ondas
Ora calmas
Ora revoltas
E que nunca se junta
E que só sabe ser solta

(Porque areia é onde Xangô se encontra com Iemanjá)

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Feitiço

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Ah, mulher!, que infinitude é essa que há nos seus mistérios que não consigo me livrar? Um café coado na calcinha, meus pelos no seu congelador, qualquer mandiga assim, só pode ser. Porque me dá uma coisa estranha entre o peito e o estômago quando lembro dos seus contornos, quando lembro do seu hálito tão aqui assim no meu e me excita pensar nas diferentes nuances do teu gosto.

Eu não sei outra maneira de querer se não for para te viver até o fim. Até te rasgar inteira por dentro, até me fazer tão presente que sua carne vicie nas minhas mãos indecorosas, até que enfim, se renda e me ilumine com essa sua risada de carnaval. E me arde te querer, me alucina as possibilidades infinitas de te comer: pelas beiradas ou primeiro o recheio ou as bordas ou pelo avesso, ao norte e ao sul. Ao todo. Ah, mulher, teu dom é o desassossego!

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