Sonso

Fim de domingo, ouço Elis cantando Aos Nossos Filhos, seguida por Atrás da Porta e depois nem sei mais, me afoguei nos pensamentos e divaguei. Eu estou buscando a tristeza, percebi. Queria a melancolia de antes, as dores de amor, a mágoa lancinante de mais uma paixãozinha abortada. Mas nada disso, não resta nada e me chateia não encontrar mais a tristeza. Não me encontrar no estado de graça e inspiração que somente a tristeza pode nos colocar. Eu não pedi, tampouco planejei, mas talvez seja um movimento involuntário de defesa e livramento, coisa metafísica mesmo, que me coloca assim chateado enquanto estado máximo que consigo chegar quando busco por um pouquinho de tristeza. É que sei, vejo e entendo, que tristeza não tem andado pro aí de pouquinho não, só vem enorme, avassaladora e voraz. Então que seja. Então tudo bem, eu sei ser sonso e vou aqui forjar um cadinho de tristeza para fazer minhas coisinhas: ouvir mais um disco dolorido, rabiscar um texto, ler todos meus autores mais complexos, prolixos e tristes. Penso muito em Caio e seu dragão. Não, ele não tem um dragão. O que seria de Caio nesse mundo de agora? E de Clarice!? Que livramento eles tiveram! Atônitos estariam. Meus ouvidos voltaram a dar atenção ao som que faz presença no ambiente: as aparências enganam, aos que odeiam e aos que amam porque o amor e o ódio se irmanam na geleira das paixões. Talvez o inverno… Talvez o invento me traga alguma pontinha de tristeza e eu até lembre como é que é chorar. E aí então, mais lúcido, menos sonso, eu sorriria de verdade. Mas tudo bem. Tudo bem…

Padrão

Supernova

Como se escreve aos trinta? É essa a pergunta que não se cala dentro de mim. Eu soube tanto sobre tudo o que falar na adolescência, desaprendi depois. Sei o que os autores sexagenários escreveram e admiro tanto! Penso e repenso cada linda de Manoel de Barros, Drummond e Quintana que, para mim, parece que eles sempre estiveram ali aproveitando a plenitude de suas velhices, aquietados e satisfeitos com a simplicidade e a pequeneza de todas as cousas. Eu sei que não foi, mas tenho que me lembrar pra saber, porque meu conhecimento consolidado é que poeta já nasce velho. E daí que nesse lance todo, eu não sei escrever aos trinta. Quero que chegue logo o meu tempo de ser velho porque eu tenho um tanto de repertório pra dizer sobre a velhice. Mas falo é da boca pra fora! A maturidade já me pesa e ainda estranho ver minha pele mudar de textura ou as costas sinalizarem em dor a má postura depois de um dia inteiro de trabalho em frente ao computador. E tem ainda meu corpo querendo uma dieta livre de carne, alongamento matinal e coisas do tipo. Ioga não – porque ioga eu acho antipático. E eu falo ióga só de sacanagem. Iôga é coisa nova, inventaram depois. Não que nada disso seja verdade, mas eu entendi assim. Ocupar a casa dos trinta não é só isso, antes fosse. A gente também se torna mais íntimo da morte, não por querer, mas por necessidade. Alguns amigos se vão, você cai na real que seus pais não estão aí pra sempre e, como diz Viviane Mosé, o tempo anda passando a mão em mim. São muitas as verdades óbvias que precisamos encarar, é como nascer de novo. Será que aí no meio tem aquele lance de retorno de Saturno também? Nunca entendi direito de astrologia, mas gosto de falar e divagar. O pensamento voa para esquecer um pouco o peso de saudades que se acumulam. Nem sei se é certo falar de saudade como peso, embora elas adquiram mesmo muito peso em dias que estamos pouco distraídos. E são tantos os outros atributos pesados que tentam nos impor, eu até que lido bem com eles, mas estão aí. Precisa ter filho, casa, casamento, carro, viagem internacional, vinho de safra especial, cabelo bem hidratado, rotina de skincare, tênis com entressola de gel, celular com três câmeras, comer a cebola do Outback – opa!, não mais porque cancelaram o restaurante – viajar no Ano Novo, comprar presente no Natal, ter um perfil ativo nas redes sociais, o feed bem organizado e ter ainda conteúdo pra se encaixar em todas as hashtags. Canso só de pensar em. Visto minha capa de invisibilidade costurada a partir do que rejeito e entendo que o que não gosto também sou eu. E ainda que tentem invasivamente me convencer do contrário, está tudo bem e bem resolvido quanto a isso. Sempre que preciso me explicar me sinto falando o óbvio ululante, absurdado que ainda esperem de mim algum esforço de pertencimento. Eu sei que nada disso tem urgência por agora. Eu sei que tudo isso é espinhoso e pode parecer confuso ou sistemático. E tudo bem. Eu estou cada vez mais interessado nas coisas que eu não sei e a vida ainda me fascina. Isso faz eu me sentir salvo, vivo e são. Talvez eu escreva sobre meus caminhos pra dentro e por dentro. Se eu conseguir chegar lá, eu escrevo sobre como conciliar a necessidade de me interiorizar e a vontade de me expandir; a necessidade de me expandir e a vontade de me interiorizar. E, quem sabe assim, quando sexagenário, eu alcanço a maioridade das minhas pequenezas.

Padrão

Ufa!

Eu precisava tanto escrever, mas por vezes hesitei, disse que não me cabia. Mas que diachos de palavras oblíquas são essas? Isso me reduz ou isso me possibilita? Nem sei mais, talvez isso tenha saído só de algum delírio do adolescente meio pedante que eu fui. Só sei que eu precisava tanto escrever! Para descarregar, para registrar os dias, para botar pra fora e depois internalizar tudo de novo num exercício necessário de regurgitofagia. Mas já tinha se passado tanto tempo! Escrever não é andar de bicicleta, que nunca se esquece, escrever é exercício físico, se não se pratica, atrofia. E a página em branco dá medo, arrepio, calafrio… eu nem sei ainda que texto é esse, se tem nome, cara ou sentimento.

Adio mais uma vez ou sigo em frente? Mas eu precisava tanto escrever! Tantos e quantos textos abortados deixei pelo caminho. Enquanto encarava o nada pela janela do ônibus a caminho do trabalho, textos incríveis bolinavam minha mente e eu deixava ir. Ou ainda, bem quanto eu queria dormir, já contando as poucas horas de sono que teria, me vinha aquele texto maroto querendo brotar. Eu o perdia. Pior ainda, o bloco de notas do meu celular que um dia apagou pra nunca mais voltar a vida e consigo levou tanta coisinha que eu queria trabalhar, explorar e expandir. E aí que me dei conta, eu que precisava tanto escrever, já não escrevia.

Tive medo de me repetir.

Fazia tanta coisa e quando me rebelava, nada fazia. Fiquei tonto da rotina. Correria, acorda cedo, ônibus lotado, estresse às sete, corre pra casa, engole o almoço, ônibus lotado, hora não passa, bate o relógio, ônibus lotado, cai a noite e já é quase outro dia. A roda que roda, o looping dos dias. Passa semana, passa mês, mal vejo, salário na conta, felicidade rápida, acordacedopegaônibuslotado todo dia é o mesmo dia! O horror. Engolia o cansaço com cerveja e me permiti confundir felicidade com o brilho.

Tudo bem, estava sempre tudo bem e eu queria que não estivesse sempre tudo bem para eu poder gastar o mais profundo de mim. Agora aqui, revendo, percebo que nunca estive distraído. Relapso sim, mas talvez devesse ser assim. Não existe tempo perdido – eu dizia outro dia mesmo conversando com uma amiga. Estamos todos onde deveríamos estar. Hoje eu quis me demorar um pouco mais no desconforto. E eu que precisava tanto escrever, escrevi. Ufa! (que interjeição mais feia!)

Padrão

Neofilia

Eu me afogo em absurdos. Estar absurdado é o meu estado de graça porque são os absurdos que me alimentam. Cada absurdo é um novo mundo de perspectivas e descobertas. E pouco a pouco vou sabendo o quanto não sei, a ignorância me revolve e me absurda ainda mais. A cada novo espanto eu ganho mais vida, eu gosto mais da vida, eu passo a querer intensamente a vida e gasto a vida. No absurdo eu encontro a dúvida, que hoje já me é mais cara que a certeza. Amadurecer é se livrar de pretensões e é na liberdade onde me encontro muito mais.

Padrão

Pássaros feridos

Meu coração é ninho de pássaros feridos. Meu colo acalanta quem chega e em troca não tem coragem de pedir permanências. Nunca foi meu querer essa efemeridade do amor, mas se até a rocha se molda com a força das águas e do vento, que dirá o nosso amar.

Quando despertamos nossas potencialidades românticas naquele afã pulsante de querer viver uma vida inteira em alguns segundos, não nos damos conta que o coração é cousa frouxa. Até que apanha. Aí sim começa a tomar forma, ora parece pequeninho de tão apertado, ora parece imenso de tanto amor, maior ainda quando se transborda em lágrimas – de felicidade ou de tristeza, de raiva ou alegria.

Eu cresci mais do lado escuro do amor. Término, despedida, desencontro, desamor. Traição, diferença, desinteresse, decepção. Esquivei-me dos espinhos para não me transformar no amargo que rejeito e faço máxima questão de rejeitar, resguardando o que há de macio para quem ainda há de vir.

Vieram. Carinho, cafuné, candura, cosquinha. Mas também rebuliço, redenção, redemoinho, reminiscências. Eu sempre quis tudo por inteiro, não calava parte nenhuma, preferia o oposto, revirava, revivia, reiterava e reconstruía. Até chegar o dia do tchau, até mais, até breve. Uma vez – me lembro agora – foi só silêncio, pior que dizer adeus. Por tantas vezes eu me acovardei e, em vez de ponto final, preferia as reticências. Noutras eu me adiantei e poupei qualquer drama, saí primeiro como que se tivesse desprendimento.

Independente da circunstância, eu nunca lutei pelo amor. Porque só entendo o amor se for livre. Fluido, dinâmico, natural, arrebatador. Sei que não se mede o amor em tempo, mas se eu pudesse ter um pedido, apenas um, pediria que ficasse um pouquinho mais.

Padrão

28

Estive longe. Longe por querer e também por necessidade. Longe do meu eu mais denso, do mundo confuso que por tanto tempo cultivei e hoje se mantém por teimosia em estado de latência em mim. Mas quando a vida parece por demais outra vida que não a minha idealizada, quando todos parecem lobotomizados pagadores de conta, não tenho outra opção e me volto a mim. Flerto com a loucura, encho a cara, planejo fugas reais, penso, penso e penso. Noites inteiras de ideias e planos, poucas horas de sono, olheiras marcando o rosto e um estrangeirismo nítido no sorriso cordial e automático de bom dia aos colegas de trabalho, que em dias como os de agora parecem todos insuportáveis. Gente de mentira vivendo vidas de mentira e cumprindo punições por violarem regras de mentira. Casamentos infelizes compensados com descontrole financeiro, vejo todo dia. Uma tá buscando por todo o tempo alguma forma de autopunição por quebrar as regras que o mundo a impõe. Está todo dia triste comendo aveia pra tentar caber num 38. Parece seguir o Evangelho da Granola, quer converter todos ao seu redor. Porre. Ficou chata. A outra passa o dia fazendo marketing pessoal e do casamento no Facebook. Faz tudo parecer perfeito, tira foto do macarrão que fez na janta, “100 dias felizes”, declarações de amor copiadas de algum site de mensagens mal feito com layout de 2004. Chata. Um dia ficou bêbada no happy hour e soltou que o marido não transa mais com ela. Para que então tanta declaração? Eu não sei me encaixar e nem fingir que acho tudo isso legal. Penso, penso, penso. Planejo fugas reais. Ouço Belchior e Sérgio Sampaio. Encontro respostas e esperanças. Dois loucos. Meus gurus nesses tempos tão hostis. Ainda tem todo o emaranhado político lá de Brasília, da capital e daqui. Querem minha opinião, estou farto e queria estar por fora. Que maravilha deve ser exercitar a indiferença. Conheci uma menina. A gente se admira e ela é bonita. Também leu Caio Fernando Abreu. Sorrimos quando sem perceber eu lancei uma referência e ela entendeu. Fora isso, vivemos n’outra sintonia. Ela está virando gente grande, o salário multiplicou nos últimos anos e agora ela quer ser fina. Jantar em restaurante caro, roupa de grife, viagem internacional, tudo importado. Eu quero ser bagaceiro. Viajar pra Manaus, tomar cerveja nacional, bater perna pesquisando preço e ir pra feira comer pastel. Descobri que amo ir pra feira. Pechinchar o preço da batata-salsa, pedir um pedaço do queijo pra ver se levo ou não, 4 caixas de morangos por 10 reais: felicidade! Fiz 28 e nada mudou do dia pra noite, mas Saturno tá retornando. Passei o ano procrastinando meus estudos de tarô, mas li tudo que encontrei de Manuel Bandeira. Não comentei com ninguém, não houve com quem. Revi meus amores. Dei outros fins a eles. Dormi menos de 4 horas e o relógio já despertou me mandando ir trabalhar. Sento na cama, esfrego os olhos, faço o em-nome-do-pai e peço em oração: “fora Temer, volta Blchior!”

Padrão

Reincidências

Te conheci púbere e te quis de modo muito egoísta, como se fosse possível te guardar numa redoma que preservasse seus ares virginais e toda aquele frescor que preservado na aura de quem ainda é cheia de estreias resguardadas. Não deu. Nem para mim e nem para você. Deliramos nas possibilidades de sermos e expandimo-nos. Os nossos caminhos se distanciaram, se aproximaram, se entrecruzaram, se opuseram e depois se aproximaram novamente e agora eu fico me perguntando em quem nos tornamos e nas tantas curvas que a vida fez. Nossas histórias, quando distantes um do outro, nos impregnaram outros vícios, outros jeitos, outro ritmo e não entendo porque eu ainda busco em ti resquícios de seu outro eu. São todas tentativas frustradas. E não consigo cessar minha busca porque sinto que reencontrá-la é encontrar também parte de mim, macia e ávida de amores, que perdi em alguma curva pretérita. Nessa busca me sobram impasses e saudades de tudo que prometemos ser e viver e pouco a pouco vou percebendo que essa minha mania de deixar tudo em reticências é escolha errante para quem não se agrada em andar em círculos. Antes ter tido coragem de te dar tchau quando para mim bastou. Ou antes ter aceitado suas tempestades como minhas também na esperança de um futuro-incerto-céu-azul. Não sei. Sei pouco e cada vez menos. Que ilusão a nossa achar que o Tempo dará conta de tudo por nós. Não dá. Você é o meu nó. E eu parto desse princípio. Hoje eu entendo quais os nossos papéis nessa história oscilante. Partindo do princípio que somos fugazes e reincidentes, me ajuda a entender: como nos esgotar?

Padrão