Mamãe, coragem

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Uma vez eu tive uma pata e o nome dela era Margarida. Margarida era alva e simpática, nunca me culpou por não dar um nome mais criativo a ela. Compreensiva, sabia que eu era criança e que “Margarida” estava já de bom tamanho. Margarida tomava banho de piscina comigo. Piscina MOR, dois mil litros de capacidade, estampa de ondinha em variados tons de azul. Mudei para um apartamento. Onde estiver, Margarida, lembre-se de mim e dos nossos banhos compartilhados.

Depois que Marga foi trocada por um galo que cozinhamos com batata num almoço de domingo, cismei que queria uma jaguatirica. Cismei por muito tempo e muito bem cismado, mas nunca fui atendido. Acredito que seria uma criança muito mais maneira se tivesse tido uma jaguatirica. Eu já entendia os perigos, mas morreria feliz e devorado por ela, desde que a tivesse. Nunca tive.

Outro ex-bicho de estimação que sinto falta é do/da Jorge/Joana, o meu/minha escaravelho. Como não sabia o sexo, tratava-lhe como transgênero. Jorge/Joana era tratado de acordo com o reflexo do sol em sua carapaça. Se estivesse refletindo verde, Jorge, se predominasse o azulado, Joana. Pela liberdade em afirmar sua própria identidade de gênero, Jorge/Joana cresceu consciente do mundo, sabia tudo de Wicca, tinha saudade imaginária de Woodstock, discutia Foucault e ouvia Roberta Miranda quando ficava meio injuriado/injuriada.

Um dia resolvi levar Jorge/Joana para a escola e a professora teve medo, todos comentaram sobre os seus chifres, a professora insensível quase o/a matou. Ninguém falava sobre bullying ainda, Jorge/Joana nunca foi o/a mesmo/mesma. Pegou fobia social, só queria saber de ver TV, não perdia um Sem Censura, por vezes o/a peguei em frente ao espelho imitando a Leda Nagle.

Jorge/Joana estava mesmo estranho. Em crise, não sei, não entendia, eu era só uma criança, eu queria ver Dragon Ball, não entendia a birra de Jorge/Joana com o mundo, sua carapaça perdeu o brilho. Numa segunda-feira, me lembro bem, Jorge/Joana sumiu do seu recinto. Nunca mais voltou. Tempos depois as fofoqueiras da rua alardearam que Jorge/Joana ganhou o mundo, que estava na Europa lotando teatros e revivendo as Dzi Croquettes. Jorge/Joana agora reflete em sua carapaça a cor que bem quer! — diziam. Nove meses depois recebi um telegrama sem saudade nem melodrama, somente uma letra do Caetano:

“Mamãe, mamãe, não chore
A vida é assim mesmo
Eu fui embora
Mamãe, mamãe, não chore
Eu nunca mais vou voltar por aí
Mamãe, mamãe, não chore
A vida é assim mesmo
Eu quero mesmo é isto aqui”

Jorge/Joana sabe bem o que é liberdade. Está feliz. A minha gata eu batizei como Gal. Ela gosta de mim quase todos os dias, é possessiva e marxista. Às vezes sarcástica, às vezes astróloga. Gosta do sol esquentando suas partes íntimas. Adora novela, não gosta de conversa alta e tem pavor de visita, principalmente aos domingos.

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