Gal

Será que envelhecer é isso? Ser a todo tempo atravessado e cortado pela morte? Assistir ao obituário dos meus já é quase rotineiro, muito mais ordinário do que um dia eu pude imaginar. E falo meus porque sinto intimidade, não só com quem é próximo, de fato, mas com aqueles que compartilhamos e moldamos nossas coisinhas mais íntimas. Vivi um luto imenso esse ano. Pensei estar imune a outras mortes, mas a notícia da partida de Gal foi acachapante! Primeiro o choque paralisante, depois, tristeza. Não de me debulhar em lágrimas, mas uma tristeza estatelante com o absurdo de uma partida sem aviso.

Ainda que eu saiba palavras bonitas e espiritualizadas, ainda que o meu credo religioso me ensine que a vida é muito mais e há muito mais, diante da morte, não consigo ser genuinamente nada disso, me sinto egoísta e mimado. Por que será que Deus não manda um aviso!? Eu queria estar preparado para as coisas da vida. Não sei nada, entendo cada dia menos, pareço um menino. Assisti ao último show de Gal Costa sem saber que era o último. Foi arrebatador. A voz, o corpo, o batom vermelho, a guitarra do Tim Bernardes timbrando bonito para a voz madura de Gal e um repertório que me deixou um êxtase. Gal para mim sempre foi um absurdo! Que mulher absurda! Em beleza, força, garbo, elegância e timbre. Foi lindo. Eu não sei como seria se eu soubesse que era a última vez, mas, se eu pudesse, escolheria saber.

Cresci em uma casa onde se ouvia música todos os dias, quase o dia todo. Gal estava lá no meio. Ainda criança, aquela voz já me aguçava. Na adolescência, se eu aprendi e tive ímpeto de pesquisar música e sobre música, foi para entender Gal. Como aquela voz soava daquele jeito? Como pode um cristal cantando? Gal ia crescendo em mim, ganhando espaço para embalar as minhas dores e nóias. Dentre um rock adolescente e outro, costumava ouvir Três da Madrugada tentando alcançar em falsete o impossível timbre de Gal. Doía. Na goela e no peito. Comprei todos os discos que achei dela. Queria a experiência do vinil, coisa de fã e outras coisas assim. Tudo isso é processo e descoberta, é formação de gente, eu nem sei quem eu seria sem Gal. E nunca, em nenhuma hipótese, nem mesmo por uma fração de segundo, imaginei que um dia eu pensaria numa Gal que não estivesse nesse mundo.

Há pouco tempo perdi minha gata, companheira de muitos anos. Dei a ela também o nome de Gal. Por mais de 10 anos eu disse esse nome incontáveis vezes ao dia. Gal, Gal, Gal, Gal! Tão presente, agora em sua ausência total nesse mundo. Talvez, envelhecer seja mesmo ser atravessado o tempo todo pela ausência e pela saudade. Eu ainda estou aprendendo. Espero.

Vai ser luz nos braços de Ọlọ́run, linda ebomi de Omolu. Eu te amo, Gal.

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